PARA ALÉM DOS CEM DIAS
(publicado no dia 26 de Outubro no «Jornal de Negócios»)
1. Cada projecto tem o seu tempo. A saída de Durão Barroso acelerou o fim do seu projecto e apressou mais que uma simples remodelação ou sucessão. Provocou uma mudança. O novo executivo, tendo a mesma base, não é de facto o mesmo Governo - é diferente, no estilo, na substância e na forma. O dia-a-dia não é o mesmo. Reintroduziu no vocabulário político o verbo «mudar», as reformas regressaram – da Lei do Arrendamento, à revisão do financiamento das auto-estradas, passando pelas modificações no sistema de saúde. E, claro, há mudanças na maneira de encarar a política económica e financeira. Lembram-se do côro que no tempo de Manuela Ferreira Leite clamava por mais maleabilidade nas finanças, que pedia incentivos à economia? Não aconteceu uma ruptura, mas, se olharmos seis meses para trás, vê-se como algumas das questões que andavam paradas começaram a dar sinais de vida. Desde há muitos anos este parece ser o executivo mais reformista.
2. Em meados do primeiro semestre deste ano existia, um pouco por todo o lado, uma sensação de paralisia. O Governo tinha perdido o ímpeto reformista dos primeiros meses, a única estratégia conhecida era a da inflexível restrição orçamental. Em sectores económicos, políticos, sociais e culturais dizia-se à boca cheia que estava tudo parado. A oposição, é certo, não existia, estava ela própria paralisada. No ar sentia-se o peculiar cheiro da paz pôdre. O país estava adiado e ainda não tinha dado por isso.
O Governo de Durão Barroso arrancou enérgico mas perdeu velocidade em cada compromisso que fazia. Em vez de remover os escolhos foi contornando-os, sempre pelo caminho mais longo. Na prática, tinha deixado de governar e falava-se à boca cheia da necessidade de uma remodelação – recordam-se?
3. Este Governo tomou posse porque tem uma legitimidade eleitoral que ninguém conseguiu desmentir, porque tem uma base de apoio parlamentar que o Presidente da República teve que admitir e porque o PS nem tinha sequer na altura condições para tentar organizar qualquer espécie de alternativa. Mas para um número significativo de observadores, tomou posse porque não existia outra solução – e isto é que os irrita, terem sido apanhados tão distraídos. Para algumas elites foi uma enorme indigestão: perdoem-me a expressão mas, para muitos bem pensantes, foi como se os descamisados tivessem chegado ao poder. Nunca tinham previsto esta hipótese. Julgavam o assunto confinado e controlado. Enganaram-se porque pensaram mais neles próprios do que no desconforto que percorria o país. Uma boa parte do PSD estava confortavelmente sentada na cadeira do poder sem muitos incómodos, à espera que a legislatura decorresse confortável e sem demasiadas mudanças ou rupturas. Por uns anos, parecia, a vida estava tratada.
4. Por tudo isto, este Governo começou debaixo de uma razoável dose de desconfiança – oposição interna e aberta dentro do PSD, oposição ideológica aguerrida do Bloco de Esquerda e contemplação distante do PS, nesse tempo ainda ocupado a procurar uma solução de sucessão interna. Este Governo ainda não tinha feito nada e já estava a ser criticado, nem tinha apresentado Programa e já tinha declarações antecipadas de voto contra. Nunca, em tempos recentes, um executivo começou a funcionar sob tão permanente observação ao microscópio. Este Governo nunca viveu sob Estado de Graça, teve tolerância zero – em boa parte porque a sua liderança suscita tudo menos indiferença. Para a maioria dos críticos o problema deste Governo reside em Santana Lopes, no seu estilo, na sua forma. A fulanização da política regressou em força. Pelo menos a coisa teve o mérito de provocar uma separação das águas.
5. Nesta semana começaram a publicar-se os habituais balanços dos cem dias do executivo. Cem dias são três meses – quase nada num ciclo de Governo, mesmo que este tenha menos de dois anos de horizonte. Vamos olhar bem de frente: em cem dias já se fez alguma coisa, que a bem dizer estava parada há pelo menos doze meses. Mas não é isso o fundamental: é claro que houve erros, é claro que aconteceram precipitações, é claro que às vezes a táctica foi mais valorizada que a estratégia. Isso é tudo verdade – mas também é verdade que se começou a agir, que a máquina voltou a andar – e o que aconteceu na educação é um dramático sinal da paralisia que existia.
6. Gostava de fazer aqui uma comparação com a música: há seis meses ninguém diria que isto tinha acontecido – juntaram-se na mesma banda músicos que não contavam estar juntos em cima do palco, ainda por cima com um solista que estava a pensar noutras canções. O resultado foi igual ao de qualquer boa «jam-session» – de início demora-se tempo a encontrar o compasso certo, o ritmo desejado, a conjugar harmonias. A seu tempo as peças juntam-se. Eu acho que já se sente que isso está a acontecer e é o receio de que daqui saia, afinal, alguma música que faça sentido que preocupa tanto, tanta gente. É claro que pelo meio convém que os músicos se ouçam uns aos outros e percebam quem está a desafinar. A surdez, nestas coisas, é fatal.
7. Qualquer projecto demora algum tempo a conseguir encontrar o seu rumo. Peguemos num novo jornal que nasce – quantas vezes os primeiros meses são desesperantes, quando tudo parece correr ao contrário do que queríamos e tínhamos imaginado? Nestas alturas o que há a fazer é ver bem o que se passa e ir corrigindo, ir acertando, ir procurando. Quem lança novos projectos sabe que a culpa dos problemas nunca é dos outros, como também nunca é dos observadores e, em última análise, dos eleitores e muito menos dos detractores e da concorrência. A culpa do que não corre bem é sempre nossa e a chave do êxito é descobrir o que não vai bem e corrigi-lo.
8. O pior que pode acontecer ao poder é tornar-se dono de todas as certezas e ficar cinzento. Tem que existir a capacidade de ouvir e a de pôr em causa o que se fez. Da mesma forma, todo o poder que perca a capacidade de se rir de si próprio está destinado a dias difíceis. Há uma velha máxima que eu gosto sempre de recordar: quando estamos muito envolvidos num projecto, convém saltar para fora dele e observá-lo de longe. Ouvir os outros, sentir o humor e ver a realidade é meio caminho andado para uma boa imagem. A outra metade vive da articulação de duas coisas fundamentais: quando a estratégia parece confusa, a táctica tem de ser clara; e mais vale apresentar obra feita, do que anunciar o que não se sabe quando será concretizado. A forma é importante no exercício do poder – e retomando a nossa «jam session» - há momentos em que mais vale diminuir o som dos amplificadores, só assim o cantor pode ganhar espaço para a sua voz.
9. A forma de exercer o poder condiciou Barroso, no seu permanente jogo de equilíbrios e de consensos que é a sua forma de agir, bem revelada agora na Comissão Europeia. É a recusa da forma convencionada de utilização do poder que está prejudicar Santana. O poder tem rituais – uns que vale a pena cumprir, outros nem por isso – mas o sistema não tolera os iconoclastas. Não sou adepto da teoria das cabalas, mas olho à minha volta e sei que existe preconceito, despeito, má vontade generalizada: desde as nossas fracas e muito oportunistas elites até aos nossos media que, vezes demais, continuam a ter dificuldade em separar informação de opinião, em separar a notícia do comentário, em separar a verdade do preconceito.
Recordam-se das acusações de populismo de há três meses? Foram esquecidas rapidamente, quando as reformas começaram pela parte mais difícil, com mais custos de opinião pública, quando em vez de medidas eleiçoeiras foram tomadas decisões difíceis.
10. Na semana passada li duas entrevistas de George Soros, nas quais ele explicava porque gastou para cima de 20 milhões de dolares da sua fortuna pessoal em campanhas contra Bush. Confessando-se um centrista nato diz que o seu principal objectivo é conseguir fazer mover o centro da posição demasiado à direita para onde Bush o levou, trazendo-o de novo para o seu lugar original, no centro. É uma reflexão curiosa. Mas Soros preconiza sobretudo mudanças sensíveis no funcionamento do sistema político, apela à existência de «think tanks» que sirvam de consciência crítica permanente do poder, a uma melhor articulação e relação com os media, e à criação de grupos de acção cívica que encontrem formas de mobilizar os jovens e levá-los a participar no governo da sociedade. São coisas evidentes. Mas de tão evidentes serem, convém tê-las sempre presentes, sobretudo quando é mesmo preciso mudar o sistema.
(publicado no dia 26 de Outubro no «Jornal de Negócios»)
1. Cada projecto tem o seu tempo. A saída de Durão Barroso acelerou o fim do seu projecto e apressou mais que uma simples remodelação ou sucessão. Provocou uma mudança. O novo executivo, tendo a mesma base, não é de facto o mesmo Governo - é diferente, no estilo, na substância e na forma. O dia-a-dia não é o mesmo. Reintroduziu no vocabulário político o verbo «mudar», as reformas regressaram – da Lei do Arrendamento, à revisão do financiamento das auto-estradas, passando pelas modificações no sistema de saúde. E, claro, há mudanças na maneira de encarar a política económica e financeira. Lembram-se do côro que no tempo de Manuela Ferreira Leite clamava por mais maleabilidade nas finanças, que pedia incentivos à economia? Não aconteceu uma ruptura, mas, se olharmos seis meses para trás, vê-se como algumas das questões que andavam paradas começaram a dar sinais de vida. Desde há muitos anos este parece ser o executivo mais reformista.
2. Em meados do primeiro semestre deste ano existia, um pouco por todo o lado, uma sensação de paralisia. O Governo tinha perdido o ímpeto reformista dos primeiros meses, a única estratégia conhecida era a da inflexível restrição orçamental. Em sectores económicos, políticos, sociais e culturais dizia-se à boca cheia que estava tudo parado. A oposição, é certo, não existia, estava ela própria paralisada. No ar sentia-se o peculiar cheiro da paz pôdre. O país estava adiado e ainda não tinha dado por isso.
O Governo de Durão Barroso arrancou enérgico mas perdeu velocidade em cada compromisso que fazia. Em vez de remover os escolhos foi contornando-os, sempre pelo caminho mais longo. Na prática, tinha deixado de governar e falava-se à boca cheia da necessidade de uma remodelação – recordam-se?
3. Este Governo tomou posse porque tem uma legitimidade eleitoral que ninguém conseguiu desmentir, porque tem uma base de apoio parlamentar que o Presidente da República teve que admitir e porque o PS nem tinha sequer na altura condições para tentar organizar qualquer espécie de alternativa. Mas para um número significativo de observadores, tomou posse porque não existia outra solução – e isto é que os irrita, terem sido apanhados tão distraídos. Para algumas elites foi uma enorme indigestão: perdoem-me a expressão mas, para muitos bem pensantes, foi como se os descamisados tivessem chegado ao poder. Nunca tinham previsto esta hipótese. Julgavam o assunto confinado e controlado. Enganaram-se porque pensaram mais neles próprios do que no desconforto que percorria o país. Uma boa parte do PSD estava confortavelmente sentada na cadeira do poder sem muitos incómodos, à espera que a legislatura decorresse confortável e sem demasiadas mudanças ou rupturas. Por uns anos, parecia, a vida estava tratada.
4. Por tudo isto, este Governo começou debaixo de uma razoável dose de desconfiança – oposição interna e aberta dentro do PSD, oposição ideológica aguerrida do Bloco de Esquerda e contemplação distante do PS, nesse tempo ainda ocupado a procurar uma solução de sucessão interna. Este Governo ainda não tinha feito nada e já estava a ser criticado, nem tinha apresentado Programa e já tinha declarações antecipadas de voto contra. Nunca, em tempos recentes, um executivo começou a funcionar sob tão permanente observação ao microscópio. Este Governo nunca viveu sob Estado de Graça, teve tolerância zero – em boa parte porque a sua liderança suscita tudo menos indiferença. Para a maioria dos críticos o problema deste Governo reside em Santana Lopes, no seu estilo, na sua forma. A fulanização da política regressou em força. Pelo menos a coisa teve o mérito de provocar uma separação das águas.
5. Nesta semana começaram a publicar-se os habituais balanços dos cem dias do executivo. Cem dias são três meses – quase nada num ciclo de Governo, mesmo que este tenha menos de dois anos de horizonte. Vamos olhar bem de frente: em cem dias já se fez alguma coisa, que a bem dizer estava parada há pelo menos doze meses. Mas não é isso o fundamental: é claro que houve erros, é claro que aconteceram precipitações, é claro que às vezes a táctica foi mais valorizada que a estratégia. Isso é tudo verdade – mas também é verdade que se começou a agir, que a máquina voltou a andar – e o que aconteceu na educação é um dramático sinal da paralisia que existia.
6. Gostava de fazer aqui uma comparação com a música: há seis meses ninguém diria que isto tinha acontecido – juntaram-se na mesma banda músicos que não contavam estar juntos em cima do palco, ainda por cima com um solista que estava a pensar noutras canções. O resultado foi igual ao de qualquer boa «jam-session» – de início demora-se tempo a encontrar o compasso certo, o ritmo desejado, a conjugar harmonias. A seu tempo as peças juntam-se. Eu acho que já se sente que isso está a acontecer e é o receio de que daqui saia, afinal, alguma música que faça sentido que preocupa tanto, tanta gente. É claro que pelo meio convém que os músicos se ouçam uns aos outros e percebam quem está a desafinar. A surdez, nestas coisas, é fatal.
7. Qualquer projecto demora algum tempo a conseguir encontrar o seu rumo. Peguemos num novo jornal que nasce – quantas vezes os primeiros meses são desesperantes, quando tudo parece correr ao contrário do que queríamos e tínhamos imaginado? Nestas alturas o que há a fazer é ver bem o que se passa e ir corrigindo, ir acertando, ir procurando. Quem lança novos projectos sabe que a culpa dos problemas nunca é dos outros, como também nunca é dos observadores e, em última análise, dos eleitores e muito menos dos detractores e da concorrência. A culpa do que não corre bem é sempre nossa e a chave do êxito é descobrir o que não vai bem e corrigi-lo.
8. O pior que pode acontecer ao poder é tornar-se dono de todas as certezas e ficar cinzento. Tem que existir a capacidade de ouvir e a de pôr em causa o que se fez. Da mesma forma, todo o poder que perca a capacidade de se rir de si próprio está destinado a dias difíceis. Há uma velha máxima que eu gosto sempre de recordar: quando estamos muito envolvidos num projecto, convém saltar para fora dele e observá-lo de longe. Ouvir os outros, sentir o humor e ver a realidade é meio caminho andado para uma boa imagem. A outra metade vive da articulação de duas coisas fundamentais: quando a estratégia parece confusa, a táctica tem de ser clara; e mais vale apresentar obra feita, do que anunciar o que não se sabe quando será concretizado. A forma é importante no exercício do poder – e retomando a nossa «jam session» - há momentos em que mais vale diminuir o som dos amplificadores, só assim o cantor pode ganhar espaço para a sua voz.
9. A forma de exercer o poder condiciou Barroso, no seu permanente jogo de equilíbrios e de consensos que é a sua forma de agir, bem revelada agora na Comissão Europeia. É a recusa da forma convencionada de utilização do poder que está prejudicar Santana. O poder tem rituais – uns que vale a pena cumprir, outros nem por isso – mas o sistema não tolera os iconoclastas. Não sou adepto da teoria das cabalas, mas olho à minha volta e sei que existe preconceito, despeito, má vontade generalizada: desde as nossas fracas e muito oportunistas elites até aos nossos media que, vezes demais, continuam a ter dificuldade em separar informação de opinião, em separar a notícia do comentário, em separar a verdade do preconceito.
Recordam-se das acusações de populismo de há três meses? Foram esquecidas rapidamente, quando as reformas começaram pela parte mais difícil, com mais custos de opinião pública, quando em vez de medidas eleiçoeiras foram tomadas decisões difíceis.
10. Na semana passada li duas entrevistas de George Soros, nas quais ele explicava porque gastou para cima de 20 milhões de dolares da sua fortuna pessoal em campanhas contra Bush. Confessando-se um centrista nato diz que o seu principal objectivo é conseguir fazer mover o centro da posição demasiado à direita para onde Bush o levou, trazendo-o de novo para o seu lugar original, no centro. É uma reflexão curiosa. Mas Soros preconiza sobretudo mudanças sensíveis no funcionamento do sistema político, apela à existência de «think tanks» que sirvam de consciência crítica permanente do poder, a uma melhor articulação e relação com os media, e à criação de grupos de acção cívica que encontrem formas de mobilizar os jovens e levá-los a participar no governo da sociedade. São coisas evidentes. Mas de tão evidentes serem, convém tê-las sempre presentes, sobretudo quando é mesmo preciso mudar o sistema.
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