December 20, 2003

PUTIN
O gigantesco fórum televisivo de Putin, dias depois das eleições, dá que pensar. Foi uma das mais extraordinárias jogadas políticas de relações públicas de um presidente em exercício, ainda por cima recém eleito, de que tenho memória.
A ESQUINA ESCRITA
Excertos do artigo publicado no «Jornal de Negócios» do dia 19 de Dezembro:
SOBRE A POLÍTICA

Quando se olha para o panorama dos diversos partidos começa a ser preocupante a falta de renovação de quadros, o não surgimento de novas gerações de dirigentes, a quase nula capacidade de atracção dos mais novos para a actividade política, para os actos de cidadania que fazem a nossa sociedade viver.
Mas não é só nos partidos que isto se nota – a falta de interesse pela participação cívica no dia-a-dia atinge todos os sectores. Organizações não governamentais, fóruns de debate, associações locais ou regionais mostram evidentes sinais de dificuldades de mobilização.
A sensação que tenho é que existe cada vez mais gente a achar que a actividade política é uma coisa desinteressante, que os partidos políticos são o refúgio dos párias, retomando-se aos poucos aquela velha percepção de que pessoas sérias não se devem meter na política.
Este sentimento, que alastra todos os dias, tem obviamente as suas razões para se ter propagado. Mas a maior das razões é a falta de mecanismos que levem as pessoas, desde cedo, a interessar-se pela participação cívica, que levem os mais novos a perceber que não basta ter uma opinião e exprimi-la, que também é importante organizar pessoas em torno de uma ideia e, em conjunto, lutar por ela.
Quando olhamos à nossa volta e comparamos o rol de efectivos e activos na política (seja no Governo, seja na oposição), notamos uma enorme diferença para o que existia há uns anos atrás: aos poucos os mais experientes, os melhores políticos e parlamentares foram-se afastando da política activa para outras actividades. De certa forma entrou em acção uma segunda linha, pouco experiente, pouco mobilizadora, às vezes decepcionante.
Há muitas razões para isto e certamente a falta de cuidado na dignificação da actividade política, a recusa em encarar de frente a necessidade de efectuar uma reforma do sistema que aproxime os eleitos dos cidadãos, a eterna falta de coragem em abordar os vencimentos dos políticos e em conseguir remunerá-los ao nível de outros dirigentes, são causas evidentes de que muita gente se desmotive e não pense nunca na política como uma actividade prestigiante e fundamental do ponto de vista cívico.
Precisamos de bons autarcas, desde as Juntas de Freguesia até às Câmaras Municipais, precisamos de deputados activos num Parlamento mais dinâmico, precisamos de organizações que mobilizem os cidadãos e que não pensem só neles durante os períodos eleitorais.
Daqui a poucos meses assinalam-se 30 anos sobre o 25 de Abril de 1974, sobre a mudança de regime, sobre o surgimento de partidos políticos. Várias gerações não sabem hoje o que era viver com censura, sem liberdade de expressão, sem eleições, sem partidos políticos, na verdade sem actividade política. Estas gerações entendem mal a razão de ser da participação na política, têm tendência a achar que isso é actividade menor e não percebem muitas vezes sequer porque há quem se meta nisso.
A reforma do nosso sistema político, que está à beira dos 30 anos, é uma necessidade se queremos estimular a participação cívica. Há assuntos que devem ser encarados de frente para que mais gente se interesse pela política, aceite fazer parte de listas, aceite candidatar-se. Precisamos de uma nova geração de políticos e dirigentes partidários que saiba falar a linguagem da sua própria geração, que saiba quais são os temas que devem marcar a sua agenda, que se preocupe em fomentar a participação dos cidadãos utilizando as novas tecnologias.
Estamos a um passo da democracia electrónica – que começa a ser uma realidade em alguns pontos do mundo. Não podemos continuar a olhar para a política apenas como um festival de oratória.
AUSÊNCIAS
Em fase de muito trabalho, o blog tem estas ausências. Volta e meia passarei por aqui. Pelo menos para deixar uma vesão do que ficou publicado.

December 12, 2003

SENTIR
A memória ajuda-nos a perdurar o sentir do que já vivemos e a poder sentir melhor o que se descobre .
A ESQUINA IMPRESSA - NÚMEROS DA CULTURA
Como hoje é sexta, é dia de «A Esquina» aparecer impressa no
Jornal de Negócios. Excertos, sobre as estatísticas da Cultura:

Os 591 museus portugueses foram visitados em 2002 por 9,2 milhões de pessoas, 18% das quais inseridos em grupos escolares...Os 668 espaços que em 2002 realizaram mostras de artes plásticas apresentaram 5527 exposições com 220 836 obras expostas.
As 1917 bibliotecas seguidas pelo inquérito do INE tiveram 11,9 milhões de utilizadores que consultaram 16,3 milhões de documentos...Em 2002 realizaram-se cerca de 15 mil sessões de espectáculos ao vivo, com um total de 2,2 milhões de bilhetes vendidos e 2 milhões de bilhetes oferecidos, um total de 4,3 milhões de espectadores que geraram receitas de 22,6 milhões de euros. O Teatro vai à frente com 56% do total das sessões, 1,3 milhões de espectadores (30% do total) e 7,2 milhões de euros de receitas com um preço médio por bilhete de 9,8 euros. Os concertos de música ligeira e clássica registaram um milhão de espectadores com receitas de 4,5 milhões de euros.
O número de salas de cinema em 2002 foi de 245, com 490 écrans activos e 111664 lugares. Foram realizadas 504,7 mil sessões com 19,5 milhões de espectadores, 64% dos quais em sessões nocturnas, um ligeiro aumento global face ao ano anterior...
Em 2002 as despesas das Câmaras Municipais com actividades culturais ascenderam a 766 milhões de euros, um acréscimo de 14% face ao ano aterior, o que não deixa de ser curioso tendo em conta as alterações verificadas no panorama geopolítico depois das autárquicas de Dezembro de 2001...
Por outro lado um estudo recente realizado por iniciativa da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros indica que 78% da população com idades entre os 15 e 65 anos se declara leitora de livros ou publicações periódicas. Na altura da realização do inquérito (Março de 2003), 58% dos inquiridos declarava estar a ler um livro e o número médio de livros lido por ano por aqueles que se confessam leitores é de 11 e o tempo médio semanal dedicado à leitura de livros ou periódicos é de 3 horas em 60% dos casos. 47% dos inquiridos declararam-se compradores de livros, em média 9 por ano. 87% declara ter livros em casa. O estudo, realizado pela Nielsen para a APEL (www.apel.pt), mostra ainda que os indicadores genéricos na área do livro e da leitura têm progredido de forma regular, de 1985 para cá.
É aliás o mesmo que se verifica quando se compara o estudo citado do INE com o de anos anteriores. Há mais espectadores, há mais iniciativas, há mais dinheiro a circular em todo o sector...
Mais importante, existe diversidade – e provavelmente é essa diversidade que leva a que alguns guetos para onde a cultura e alguns dos seus agentes gostaram de ser remetidos estejam hoje em dia mais diluídos e tenham menos notoriedade... Há menos “iluminados” no meio dos que frequentam actividades culturais? Isso a mim parece-me bem – embora para outros seja o desmoronar de um clube restrito que gostariam de ter mantido por mais tempo.

December 11, 2003

A CRISE NA DISNEY
Demissões em série, contestação aberta ao presidente da companhia, resultados operacionais em queda, tudo isto são os dados mais recentes de uma das maiores companhias de entretenimento do mundo. Roy Disney, sobrinho e filho dos fundadores da companhia, demitiu-se em 30 de Novembro do Conselho de Administração, em guerra aberta com Michael Eisner. A 1 de Dezembro foi a vez de Stanley Gold se demitir. Ambos fundaram um site, Save Disney que é um dos melhores exemplos de como a net pode ser um centro operacional de informação numa estratégia de guerra de opinião contra os poderes estabelecidos - até dentro de uma grande multinacional. As cartas de demissão de ambos merecem ser lidas.
DADOS DA CULTURA
Como se viu por estes dias num debate da RTP 1 sobre política cultural, há quem gosta de falar muito sem saber bem do que está a falar. Como a coisa às vezes atingiu momentos surrealistas, remoendo as leitura dos mais recentes dados do Instituto nacional de Estatística sobre o sector que podem ser acedidos a partir daqui. E, já agora, um estudo deste ano da Associação de Editores e Livreiros (APEL), que pode ser consultado indo a este sítio. A todos uma boa leitura.
LUZ
Repararam na luz que esteve ontem? Esta luz única que Lisboa tem nestes dias de Inverno em que não chove, quando o rio brilha e a cidade parece que acabou de ser pintada de fresco.
INSÓNIA
Dois dias seguidos a acordar às cinco da manhã começa a ser um bocado demais. A única vantagem é poder sentar-me aqui a escrever estes posts.
BOA IDEIA
A reedição da obra poética de Sophia de Mello Breyner Andersen, que retoma osx formatos originais de edição dos seus poemas, é das melhores coisinhas que se tem feito nesta terra em matéria editorial. A Caminho está de parabéns.
PARA OS FANÁTICOS APPLE
As lojas Apple exercem um estranho fascínio. A recente inauguração da mais recente, em Tóquio, foi um acontecimento: filas de quase duas mil pessoas, á espera toda a noite, á chuva. Entre elas dois americanos, pais e filhos, que voaram da California só para terem o prazer de estarem entre os primeiros clientes. Estranho? AWired conta a história.

December 08, 2003

CITAÇÕES I
Quando os outros escrevem o que gostaríamos de ter tido o senso de escrever, nada melhor que os citar:
BOLSAS. Nos comentários, um pouco por todo o lado, sobre as bolsas de criação literária lêem-se coisas espantosas, infelizmente por parte de quem as defende de forma incondicional, como se fosse obrigação do Estado pagar os seus escritores. Não é. Nunca concorri a nenhuma delas e não recebi nenhum subsídio — mas não me incomoda que alguns escritores tenham obtido bolsas por um período determinado. Acho que fizeram bem. No geral, negoceio com o meu editor e isso basta-me. Mas é o meu caso e eu não gosto de juízos morais — e também não gosto desse processo de intenções que faz disto um caso político, até porque acho que, em circunstâncias ideais, o Estado não devia ter nada a ver com o domínio da criação — não gosto do Estado nem da galeria de comissários do gosto (sobretudo quando são vanguardistas, porque têm tendência para se tornarem pequenos ditadores), funcionários da «divisão de estética e metacrítica», pedagogos oficiais e ressentidos com poder. Sobretudo isso — não gosto do Estado nem do seu ressentimento. O desejo de ser pago pelo Estado assusta-me. É uma dependência medíocre. Mas, como escrevi, é uma opção pessoal.
Muita gente fala «dos escritores» como se aqueles que não vivem dos seus direitos de autor, ou seja, do seu trabalho como escritores, fossem herdeiros de fortunas familiares e tranquilizadoras, pagos por «internacionais do capital» ou felizardos que arranjaram dinheiro ao virar da esquina. Não: são pessoas que muitas vezes têm um emprego normal (ou banal, ou desinteressante, ou fascinante, ora bem ou mal pago), que escrevem porque isso é uma razão superior na sua vida (e dormem menos, e não gastam o que lhes apetece, e têm um tempo controlado de maneira diferente), que têm vida familiar ou não, que acreditam ou não no que fazem, que esperam um dia poder viver só do que escrevem e lutam por isso com alguma tenacidade. Alguns são professores, outros são bancários, outros são advogados, outros são funcionários do Estado, o que forem. Conheci muitos ao longo dos últimos vinte anos. Conheci bastantes. Vivem em Lisboa, no Porto ou na província — alguns mudaram-se para a província porque aí têm mais tempo e melhores condições financeiras (três deles acabaram de publicar os seus livros — que são bons, e vendem razoavelmente). Alguns aceitaram «a lei do mercado» — e sabem que não serão recompensados financeiramente no imediato, mas continuam a acreditar no seu trabalho —, outros participam dela — e escrevem romances populares, ou mais «vendáveis» (não acho um crime, não).
Passeando pela lista dos escritores realmente significativos (eu escrevi: significativos) dos últimos vinte anos — no estrangeiro —, vejo que nenhum deles teve uma bolsa para primeira obra. Nem para segunda. A maior parte nunca teve, aliás. E os melhores deles todos até são os que conheceram outro mundo para lá da literatura, desde enfermeiros que ganharam o Goncourt, até jardineiros que arrebataram o Booker Prize. (Em vez de — em Portugal — pedir apoio ao Estado, que tal melhorar as condições de retribuição por parte dos editores?) E acho que, por muito genial que um autor se julgue (daquilo que eu conheço, boa parte deles acha-se verdadeiramente injustiçado por ainda não ser venerado), se ao fim de vários livros não se consegue «viver da literatura», acho que é da mais elementar lei da modéstia, do bom-senso e da própria sanidade mental, que se viva de outra coisa para se poder continuar a escrever livremente, sem constrangimentos e sem ressentimentos
.
CITAÇÕES II
Mais uma imperdível, do mesmo meu amigo:
O RISO DO PROF. MARCELO. Primeiro passaram aqueles livros todos no ecrã, mas isso já não nos faz rir. Porém, aquele riso incontido no final, aquela dificuldade de o controlar, aquele sem-nexo das frases, tudo isso anunciou, sem querer, que o prof. Marcelo tanto podia estar a falar da revisão constitucional como dos bombeiros de Celorico. É, portanto, o fim de uma era. «O!, that a man might know/ The end of this day's business, ere it come;/ But it suficeth that the day will end,/ And then the end is known.» [Shakespeare, no Júlio César]
CASA
Vou ficar horas sentado a ver Lisboa do outro lado, o vale ao longo do rio, as árvores da serra, a imaginar como seria.
NOTAS
Nada como as notas de uma guitarra eléctrica para nos reconciliarmos com o mundo.

December 06, 2003

IRRESISTÍVEL
Extraído do sempre irresistível Homem A Dias:
Acordo ortográfico
É a cooperação luso-brasileira em pleno. Logo depois do dr. Sampaio, na Argélia, condenar a ‘ocupação’ do Iraque e criticar as políticas israelitas (ver abaixo), Lula da Silva, na Síria, condenou a ‘ocupação’ do Iraque e criticou as políticas israelitas. Reconforta saber que o nosso presidente articula posições (sem segundos sentidos) com os grandes líderes do mundo civilizado. Quem está com Bush é lacaio; quem se entende com Lula é esclarecido (ou batata cozida, mas enfim).
A ESQUINA ESCRITA ESTA SEMANA

O QUE SÃO POEMAS?


Palavras que se juntam e que exprimem mais emoções que razões, que mostram mais o sentir que o resumir – será isto uma aproximação ao que pode ser a poesia? Ou devemos apenas esperar que apenas aquilo que lemos pode ser poesia? E será a exist~encia de palavras uma condicionante da poesia?
No meio de tudo o que é efémero, qual o lugar das canções que atravessam os tempos e perduram nas memórias? São produtos menores ou encerram em si o valor dos sonetos publicados em edições de autor manhosas de há cem anos atrás e que com o correr dos anos ganharam o estatuto de obras-primas?
Defendo desde há uns anos um princípio sobre a escrita contemporânea que gostava hoje de partilhar: é minha convicção profunda que alguma da melhor poesia (e, em certa medida, narrativa) do último meio século se encontra nas letras de canções pop e rock. Mais: acho convictamente que as palavras das canções de Bob Dylan, dos Rolling Stones, de Bruce Springsteen, de Neil Young, de Prince, de Tom Waits, dos Smiths, dos Joy Division, de Beck, de Enimen, dos Mind da Gap, de Sam The Kid, de Jorge Palma, de Sérgio Godinho ou de Mafalda Veiga e Carlos Tê representam o melhor retrato do tempo em que foram feitas. São por si sós pequenos contos ou poemas, agora apenas apreciados como acessórios de melodias mas que o tempo encarregará de preservar na dimensão literária que têm.
Os novos declamadores são os cantores, os autores que cantam o que escrevem, que descrevem o que se passa à sua volta, que mostram o que sentem ou querem fazer sentir. São eles que nos emocionam, que marcam a nossa memória, que balizam as épocas e gerações. As nossas vidas são marcadas por canções públicas, por frases que nos tocaram e ficaram gravadas na memória, por palavras que as mais das vezes foram ouvidas e nunca lidas. Há poucos poemas de amor como «Reel Around The Fountain» dos Smiths, poucas histórias de arrebatamento como «Paixão» de Rui Veloso, poucos episódios de sedução como «Vestígios de Ti» de Mafalda Veiga, poucos manifestos como «The Times They Are A Changin’» de Bob Dylan ou «Street Fighting Man» dos Rolling Stones, poucos gritos como «O Primeiro Dia do Resto das Nossas Vidas» de Sérgio Godinho. Há muitos nomes que ficam a faltar nesta lista mas deixo a cada um de vós o encargo de contribuírem com mais uma sugestão para aesquinadorio@hotmail.com, endereço para que vos peço o envio dos nomes das canções que são os vosso poemas preferidos.
No último meio século as décadas são marcadas por momentos saídos da música e do cinema – mas são as melodias que mais reflectem os ritos tribais da comunhão de sentimentos; os cortes geracionais são feitos em torno de estrelas pop e rock e das canções que se tornaram hinos, que marcam anos e viragens, dos grandes festivais rituais feitos em torno das músicas.
Falemos também de amor: nunca ele foi tão bem descrito como em canções, desde os clássicos de Cole Porter e Irving Berlin até Prince, passando por Springsteen ou Ian Curtis. É impossível ficar insensível às palavras de «Love Will Tear Us Apart», essa previsão fatalista e tão real do que é o desenlace dos grandes romances, da mesma forma como não se pode resistir à tentação que Chris Isaac descreveu em «Wicked Games».
Quanta gente continua a ler poesia e quanta gente a ouve e interioriza? E quantos se recordam das palavras, das rimas que ficaram presas a melodias que não nos largam nunca mais? Muita da melhor escrita está na música, está nestas letras que ficam gravadas nas nossas memórias e que nos ajudam a recordar como os tempos estão a mudar.

TER
Tenho saudades do que vi, vontade do que senti
ESQUINA ESCRITA
NA SEMANA PASSADA


O SEGREDO DE CAMPO DE OURIQUE


Um dia destes, por graça, escrevi no meu blog que viver em Campo de Ourique me punha bem disposto. Acho que nunca tive tanta resposta a um «post» de blog como neste caso. Até de França uma nativa do bairro me escreveu, informando que todas as últimas sextas-feiras do mês os mais tradicionais campo-ouriquenses (será assim que se diz?) se reúnem num jantar, que, pelos vistos, deve ser hoje : «Não esqueçam que a proxima sexta feira é a ultima do mês de Novembro e que como tal é o famoso dia, ou antes noite, do jantar dos "antigos" da Tentadora».
Tomei conhecimento com Campo de Ourique através de uma descrição catártica do bairro feita em «O Que Diz Molero», de Diniz Mchado. Se bem me lembro era a historieta de uma fuga, apimentada com colorido local. Era eu menino e moço, e vivia no Bairro de S. Miguel, à Avenida de Roma, quando li o escrito e fiquei cheio de juvenil curiosidade sobre aquele distante local da cidade onde tão características personagens serviam de alimento à inspiração dos ecritores.
Acabei lá caído uns 25 anos depois e desde há uma década que me encanto com o Bairro. Há várias razões para isto: é um dos derradeiros bairros da cidade, um dos sobreviventes bairros de Lisboa com vida própria, com comércio onde todos se conhecem, com pequenas lojas como já não existem, ao lado de «franchisings» de grandes marcas ou de lojas de design. Aqui o comércio de rua não é uma palavra vã.
Campo de Ourique tem uma vantagem muito especial sobre outros bairros: é plano, está assente num dos raros planaltos de Lisboa, que vai da Estrela às Amoreiras. Em Campo de Ourique anda-se naturalmente a pé. Passeia-se, em vez de andar de carro. Visita-se uma loja, espreita-se outra, descobre-se um recanto, troca-se meia dúzia de palavras com o vendedor de jornais ou o homem da farmácia, pode-se pedir para guardar pão, até as empregadas do supermercado – mesmo as emigrantes estrangeiras – acabam por nos conhecer e cumprimentar. Mais: em Campo de Ourique há vizinhos, não do andar do lado, mas da mercearia de ao pé da porta. Nas lojas da minha rua, a Rua do Patrocínio, há fruta que não é toda igual, sabe a fruta e não é importada de lugares exóticos – vem das Caldas da Rainha; há uma loja de botões; a deliciosa Tasquinha d’Adelaide; o velho bar Paródia; a igreja dos Alemães e um largo com um chafariz ao pé da Embaixada da Suiça, que o meu bom amigo Fernando Assis Pacheco me fez um dia descobrir.
Se há uma coisa em que Campo de Ourique está bem fornecido é nos restaurantes: desde a já citada Tasquinha, até ao Solar dos Duques, passando pelo Coelho da Rocha, o Bem-Disposto, o Stop do Bairro, o Retiro do Marisco (que pica-pau....), o Tico-Tico (uma das melhores cervejarias da cidade), o Verde Gaio dos grelhados, aqui há de tudo um pouco, para todas as bolsas, mas sempre com qualidade e um serviço simpático. Até o restaurante chinês ao lado de casa me parece invulgarmente bom e as línguas de veado do Café Canas são de longe as melhores de Lisboa.
Mas há mais: uma loja de produtos rurais sempre com queijos, enchidos e doces do melhor, uma pequena confeitaria com doce de abóbora e empadas de galinha irresistíveis, o próprio Mercado Municipal que tem uma variedade rara de produtos da melhor proveniência – como é de bom tom dizer-se, e, finalmente, a Garrafeira de Campo de Ourique, onde pontifica o Sr. Santos, sempre disposto a uma sugestão equilibrada que concilie a qualidade com o preço e nos faça descobrir bons vinhos sem nos arruinar.
Mas o melhor mesmo é que este percurso que acabei de contar se faz com todo o ripanço do mundo numa hora bem passada das manhãs de sábado. Não há muitos sítios assim. É este o segredo de Campo de Ourique.

December 02, 2003

SONHOS E REALIDADES
Às vezes os sonhos são precisos para imaginar realidades. Às vezes os sonhos inspiram-nos. Mas as realidades são mais interessantes que os sonhos, apesar de serem mais árduas e difíceis. Gosto mais de lidar com realidades do que com sonhos, mesmo quando os sonhos são importantes para nos ajudarem a encontrar novos desafios. As realidades são o que são; os sonhos, algumas vezes nada são.