October 10, 2007

O ESTADO NA TELEVISÃO
(Artigo publicado na edição de Outubro da revista «Atlântico» - não percam nesta edição o magnífico artigo de Rui Ramos sobre Che Guevara.

No segundo trimestre de 2008, se os prazos não forem furados, estarão resolvidos os concursos que irão decidir como funcionará em Portugal a televisão digital terrestre. Uma parte importante destes concursos tem a ver com a possibilidade de existência de novos canais gratuitos e generalistas de distribuição nacional, um factor absolutamente decisivo para o desenvolvimento da paisagem audiovisual portuguesa, para o desenvolvimento da produção independente e para a existência de novas plataformas de distribuição de conteúdos portugueses. E, claro, para a existência de maior e melhor oferta aos espectadores.

Estes concursos trazem também a necessidade de definições claras do Estado em relação ao serviço público de televisão, pelo menos a três níveis:

- definição e operacionalização de um modelo de serviço público não concorrencial com os privados;

- saída do operador de serviço público do mercado publicitário, libertando a fatia (cerca de 22%) que agora retém para os novos canais privados, permitindo alargar o mercado e fomentar a viabilidade do surgimento de novos operadores;

- e, finalmente, a indicação de uma posição clara do accionista Estado à administração da RTP sobre os moldes e limites da sua participação na Televisão Digital Terrestre, por forma a não introduzir novos factores de distorção da concorrência.

Muito do que foi recomendado no Relatório do Grupo de Trabalho Sobre o Serviço Público, de 2002, continua por aplicar e, inclusivamente, nestes últimos anos a RTP tem reforçado a sua componente comercial (só este ano as receitas publicitárias aumentaram 14 a 15%) . É claro que isto acontece porque a RTP tem vindo a aumentar a sua agressividade em conteúdos concorrenciais – a RTP 1 pode chegar ao fim do ano em segundo lugar de audiências - obviamente graças a uma interpretação muito sui-generis do que deve ser serviço público de televisão. Este é um tema que merece estar em permanente discussão até porque – como muita gente bem lembra – somos todos nós que pagamos o grosso do funcionamento da RTP, quer através dos impostos, quer na factura de electricidade.

Eu continuo a achar que se justifica um serviço público de televisão, em dois canais abertos de cobertura nacional, de características diferentes, ambos sem publicidade; este serviço público deve garantir ainda um canal internacional que transmita uma imagem contemporânea do país e da sua produção audiovisual. E sim, tudo isto deve ser pago pelo Estado, mas não pelo mercado publicitário, precisamente para evitar uma distorção da sua missão e não entrar em concorrência com os privados. Ao contrário do que alguns acharão isto não é uma utopia – existe em numerosos países da Comunidade Europeia e em todos eles tem um importante papel estratégico na defesa da língua e cultura nacionais no único espaço onde essa defesa faz sentido hoje em dia e que é precisamente no audiovisual.

Por isso mesmo, quando estamos à beira de entrar na época da Televisão Digital, faz sentido relançar um debate sobre o que deve ser o Serviço Público nesta nova era. Se o papel e limites do Serviço Público não forem modificados e não ficarem bem definidos começaremos mal e, mais uma vez, o Estado cederá à tentação de ter um canal que disputa audiências com o único propósito de garantir um número razoável de espectadores para um serviço noticioso historicamente manipulado e ao serviço dos interesses políticos do momento. Se nesta fase não nascerem novas normas e fronteiras de actuação do Serviço Público, então o melhor é dar razão ao que defendem a sua extinção, porque, tal como está, acabará por ser apenas um empecilho ao desenvolvimento livre e saudável do mercado audiovisual.



PENSAMENTOS OCIOSOS I

Quer-me parecer que a actual barragem de informações sobre custos do serviço público faz já parte de uma campanha de preparação da opinião pública para a substituição, provavelmente inevitável, da actual administração da RTP. É preciso dizer-se que esta foi a melhor administração que passou por aquela casa nos últimos anos: renegociou (bem) a dívida, conteve custos, conseguiu fundir a RTP e a RDP, alienou o que não era estratégico, passou a pagar a fornecedores em prazos normais e instalou tudo num único edifício com melhores condições que existiam antes. Isto foram as coisas boas. No rol do que não correu bem tem que se incluir a deriva concorrencial e comercial, a participação na guerra das audiências, a criação de um modelo de serviço público desfocado e qualitativamente polémico, a continuação da instrumentalização da informação ao poder político e, sobretudo, um enorme falhanço na mudança da cultura de empresa, na lógica de funcionamento interno e na burocracia existente, que provavelmente se agravou em vez de melhorar. Quem suceder à actual administração recebe uma fasquia alta, mas ainda muitos problemas por resolver: o mais grave provavelmente é fazer melhor serviço público e deixar a concorrência com as estações privadas, ainda para mais no início da Televisão Digital Terrestre.


PENSAMENTOS OCIOSOS II

Muito se tem falado sobre as obrigações do Serviço Público em relação ao Desporto, a propósito do Mundial de Râguebi. Um elevado número de pessoas apareceu a dizer que eles deveriam passar na RTP a qualquer custo. Vamos por partes: quando se atribuem licenças de emissão de canais temáticos dedicados ao desporto, em regime de assinatura paga, estes canais só podem viver se garantirem direitos exclusivos que sejam aliciantes para os espectadores subscreverem o seu serviço. Eu acho que entre as vocações do serviço público não está transmitir competições desportivas que têm uma elevada componente comercial, como é o caso do mundial do râguebi, apesar do carácter amador da brilhante e brava selecção portuguesa. Se um Estado aceita a existência de canais pagos especializados em Desporto, não pode depois fazer-lhes concorrência no serviço público com conteúdos gratuitos do mesmo género – é uma questão básica. Sou dos que acha que o serviço público português tem desporto a mais e só por isso é que a RTP se pôs a jeito ao fazer sistemáticas transmissões – pagas – de campeonatos de futebol estrangeiros, ao mesmo tempo que não quis abrir os cordões à bolsa na compra dos direitos do campeonato de râguebi. Mas a questão de fundo continua a mesma: deve o serviço público fazer concorrência com conteúdos comerciais que estão no core-business dos canais privados? Custa-me muito perceber porque é que os defensores do bom funcionamento do mercado abrem excepções em matéria de televisão e de desporto…