August 30, 2006

SÓ PODE SER ANEDOTA


Antes de mais nada deixem-me esclarecer que sou completamente a favor de um apertado controlo de uso de armas de fogo, quer por civis, quer por forças policiais. Manifesta e factualmente Portugal é neste domínio um país descontrolado – em parte por causa dos caçadores, em parte pela forma como as forças policiais têm tradicionalmente utilizado armas de fogo, quer em serviço, quer os seus agentes enquanto civis.

Mas até dou de barato que convém regulamentar bem e limitar a utilização de armas de fogo por civis – e sempre achei que a forma como em época de caça se passeiam, exibem e utilizam armas é uma coisa absolutamente inaceitável – e que objectivamente cria a existência de um número elevado de espingardas, algumas das quais são depois utilizadas noutras actividades.

Regulamente-se, portanto. Mas para manter alguma seriedade na coisa, convirá que se regulamente com lógica.

A nova lei prevê, e bem, que as licenças de utilização de armas, estejam dependentes da frequência de um curso de formação técnica e cívica. Ora aqui é que começa a parte anedótica da legislação: é que a Lei prevê que estes cursos sejam ministrados pela PSP ou por entidades que ela credencie. O ponto é precisamente este: alguém em seu perfeito juízo acha que a PSP pode ser referência em formação cívica? Uma força policial que abusa da autoridade, da força, e das armas de que dispõe, que ora foge do crime organizado, ora faz uso desproporcionado da força em conflitos controlados, que referências cívicas tem? O legislador deveria reconverter-se para escritor de anedotas: acreditar que a PSP seja uma referência cívica é um erro fatal – tanto mais que o historial de uso indevido de armas de fogo pelos seus agentes, em serviço e fora dele, é manifestamente uma prova precisamente do contrário. A PSP na prática é a força que decide quem pode e não pode usar arma – é isso que está na letra da Lei e isso é uma garantia de insegurança certa, uma porta aberta para o arbítrio, e tendo em conta casos recentes, mais uma possibilidade de corruptelas variadas.

Outro ponto que esta Lei mantém, inexplicavelmente, é a concessão automática de licenças de uso e porte de arma a deputados e governantes – deve ser alguma herança do jacobinismo do início da República, mas nos dias de hoje é inexplicável.

De boas intenções está o inferno cheio – e esta Lei parece ser apenas um somatório de boas intenções para tranquilizar os simples de espírito